terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"Insatisfação alimentar de fome psíquica"


"Por que as condições materiais, se indispensáveis, são potencialmente 'objetivas' e 'necessárias' de muitas maneiras diferentes, de acordo com a seleção cultural pelas quais elas se tornam forças efetivas?" (Marshall Sahlins, "Cultura e Razão Prática", p.187).

Baseado no artigo: Comida de Comer Comida de Pensar de Clarissa Magalhães/1995.

"O conhecimento das características pertinentes à condição econômica e social (o volume e a estrutura do capital apreendidos sincrônica e diacrônicamente) só permite compreender ou prever a posição de tal indivíduo ou grupo no espaço dos estilos de vida, ou o que dá no mesmo, as práticas através das quais ela se marca e demarca, se for concomitante ao conhecimento (prático ou erudito) da fórmula generativa do sistema de disposições generativas (habitus) no qual esta condição se traduz e que a retraduz: falar do ascetismo aristocrático dos professores ou da pretensão da pequena burguesia não é somente descrever estes grupos por uma de suas propriedades, ainda que se trate da mais importante, é tentar nomear o princípio gerador de todas as propriedades."
(Pierre Bourdieu, in "Gostos de Classes e Estilos de Vida", p.83).

De acordo com Clarisse a alimentação ou as "práticas alimentares" selecionam alimentos e definem "dietas alimentares". Elas não só são proibitivas em relação a alguns alimentos, como são prescritivas em relação a outros. Estas proibições e estas prescrições dão vida simbólica à categoria comida.
Para Roberto da Matta: "...o alimento é algo neutro, a comida é um alimento que se torna familiar e, por isso mesmo, definidor de caráter, de identidade social, de coletividade" (Roberto da Matta, 1988).
Para Clarisse o Roberto da Matta da a idéia de que o alimento seria tudo o que é potencialmente comível, no sentido de nutrir o corpo humano, comida seria o conjunto de alimentos selecionados culturalmente como comível.
Já Klaas Woortmann da uma segunda definição para comida, dizendo que comida é o alimento processado, pronto para ser comido. Quer dizer, a relação entre alimento e comida é mais ou menos como cru e cozido:
"O alimento é o mesmo que comida. Tudo o que é comida é alimento, mas ninguém fala vai comê o alimento, fala que vai comê é a comida" (informante, citado por Woortmann 1978:72).
Já no trabalho de Alba Zaluar "A Máquina e a Revolta" encontramos uma outra idéia de comida, que aparece na fala dos moradores do conjunto habitacional "Cidade de Deus" (R.J.), onde: "comida é, basicamente, feijão, arroz e carne." (op. cit., p.106).
Neste conceito de comida, entra um sistema de classificação bastante subjetivo, como forte/fraco, reimoso/não-reimoso, quente/frio, que aparecem em alguns trabalhos como o de Carlos Rodrigues Brandão "Plantar, Colher e Comer", que será melhor discutido mais tarde. Por enquanto indica-se que, aqui, comida entra como o conjunto de alimentos que têm maior valor simbólico ligado à força, alimentos que são fortes: um alimento forte é bom para uma pessoa forte porque ele tem sustança e vai manter aquela pessoa forte. No entanto ele não é bom para uma pessoa fraca pois o organismo desta pessoa não aguentaria este alimento e ela poderia passar mal. Um alimento fraco é bom para uma pessoa fraca porque é condizente com o estado de seu organismo, mas não é bom para uma pessoa forte pois não sustenta esta pessoa. Com certeza o estado ideal de uma pessoa é forte. Então, neste conceito, comida aparece como o conjunto de alimentos que, no seu entendimento, têm força para manter esta pessoa forte.
Como pode-se perceber, "alimentação" varia tanto na prática como na teoria, já que assumi formas de significado diferentes conforme o contexto em que está sendo discutida. Um sentido não se contrapõe necessariamente a outro e às vezes um está contido em outro. E também percebe-se que a língua é, a um só tempo, ampla e restrita demais e que é difícil ter uma palavra única para um sentido único, completamente definido.
No trabalho de Alba Zaluar têm-se uma definição de comida simbolicamente representativa. Simbólica porque traz a palavra comida que é comum, usual, ligada a uma definição específica e peculiar. Comida é o trio de alimentos que uma família precisa ter à mesa, pois todos precisam ter comida à mesa e comida é "feijão, arroz e carne", todos precisam comer estes três alimentos. Mas por que estes alimentos?
Porque entre o grupo social estudado por Alba Zaluar, a carne "é um símbolo poderoso de prestígio social e de riqueza" (Zaluar, 1985:105). Ela é considerada no seu valor nutricional - comida forte, "boa para a saúde" - mas principalmente pela idéia de que "quem não come carne passa por privação alimentar" (idem), pelo seu valor simbólico, que lhe confere uma importância muito grande na dieta daqueles trabalhadores. É por isso que a falta da carne não significa somente a falta dos nutrientes que ela contém, porque esta falta poderia, eventualmente, ser suprida por outros alimentos. Mas mais do que isso, não ter carne significa a falta de algo que é muito importante e desejado e a "eterna insatisfação alimentar" (idem, p.106). Com o feijão e o arroz, acontece algo parecido. Quem não os pode comer, está "passando fome".
Alba Zaluar cita Antônio Cândido, que chama essa "insatisfação alimentar" de "fome psíquica", onde o desejo pela ingestão do alimento está diretamente ligada com o aproveitamento orgânico do alimento pelo corpo.

2 comentários:

  1. querido Camilo.
    Seu blog esta uma maravilha. Parabéns. Adorei. Muito rico. sucesso sempre. Vou ficar antenada agora. Grande bj

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